AINDA QUE SEJA de José Saramago
Seja a noite mais negra, e mais profundo, E gelado, e sombrio o mar dos monstros. Seja o olho de Deus como o da cobra: Uma fenda de escamas numa pedra. Seja o centro da terra fogo ou cinzas, E mais torta e sulfúrea a cicatriz Dos incêndios que vão de lado a lado Desta face mesquinha, lamentável. Seja a rua mais longa e descoberta, E mais alta a parede que ao fim dela Da suspensão do passo faz comércio De panos baços e ouros sem contraste. Seja o fruto mais podre e enganoso, Entre a mão e o trigo a aranha preta. Seja o calor do sol outro fantasma Na frieza da gruta dos espectros. Seja o mundo mordido e toda a carne Pelas mandíbulas disformes ou ventosas, Ou agulhas mortais de quantos seres Doutras terras do céu desçam a esta. Seja lá o que for, ou venha a ser, Ou tenha sido em dor e agonia, E Em miséria, pavor e amargura, Se o teu ventre se abre e me procura.